O Brasil sediará o principal evento anual de debate sobre o meio ambiente e a crise climática em 2025, ao receber a COP-30 em Belém. Para a presidente do Instituto Talanoa e especialista em políticas públicas e mudança do clima Natalie Unterstell, a novidade da experiência fica por conta das conversas ocorrerem no País dela, já que esteve presente em outras edições anteriormente — a primeira foi na COP-15, em Copenhague, na Dinamarca, em 2009.
Na avaliação de Unterstell, contrária à tese de que combustíveis fósseis podem financiar a transição energética, o Brasil corre o risco de “perder o seu lugar no mundo”, caso avance uma política de expansão de petróleo, por exemplo.
Em entrevista ao Estadão, além da organização da COP, Unterstell fala sobre questões ambientais como a resiliência das cidades, a importância de adaptação e mitigação dos impactos e a exploração de petróleo na Margem Equatorial. Confira os principais trechos.
- Você acredita que a organização da COP até esse momento tem sido satisfatória?
A gente tem uma certa coreografia das COPs, que podemos comparar com as dos anos anteriores. Por exemplo, o anúncio da presidência já foi feito. Então, a gente está mais ou menos na coreografia habitual. É óbvio que a gente gostaria de ter muitos mais detalhes prontos né? A ansiedade é muito grande. Um ponto de atenção é esse da logística, que está causando preocupações, principalmente porque há aí uma onda de preços abusivos sendo praticadas no mercado.
- As duas COPs anteriores ocorreram em países que têm economia baseada em extração de combustíveis fósseis (Emirados Árabes Unidos e Azerbaijão). O que o Brasil pode mostrar de diferente para avançar nesse debate sobre energia?
O Brasil também é um país que tem a questão da exploração de combustíveis fósseis, é algo muito importante para nossa economia. Então, a gente não pode se considerar muito diferente dos países anteriores, assim não mencionaria apenas os últimos dois, colocaria também o Reino Unido, que hospedou em 2021. O Brasil tem de chegar com sinais políticos claros de quando começa essa transição e quando é que a gente quer completá-la, porque o mandato acordado por todo mundo em Dubai é a saída dos combustíveis fósseis, então é disso que a gente tem que tratar. Agora é uma questão de cronograma, e o Brasil tem essa grande oportunidade de dar esse sinal.
- Ouve-se dizer muito que o Brasil já tem uma matriz energética limpa ou que já avançou mais do que os outros países, por ter primariamente hidrelétrica. O que falta avançar nesse caminho? O que nos puxa para trás?
É verdade que estamos muito à frente dos outros nas renováveis, só que nessa altura não temos que correr olhando para trás, a gente tem de correr olhando para frente. Para onde que é essa frente? É completar a transição, saída total. O Brasil tem de olhar para a chegada. Se hoje a nossa matriz elétrica é entre 80 e 90% renovável, a gente tem de mirar no 100%. Aqui tem duas preocupações. Uma delas é: a nossa matriz é muito dependente das hidrelétricas, e o que está acontecendo com as hidrelétricas? As do Norte do País não estão conseguindo produzir aquilo que normalmente produziam, basta ver Belo Monte, porque o regime de chuvas está alterado por causa da mudança do clima. Então, se a gente não adaptar o nosso sistema, vai continuar “fossilizando” a matriz, colocando mais térmica, a carvão ou a gás. Tem uma pressão aí nesse sentido, e aí em vez da gente ir dos 80% para os 100%, a gente pode inclusive andar para trás. Em segundo lugar, lembrar que nós já vivemos num mundo mais quente, de clima mais instável, logo, se a gente não se adapta corretamente, podemos inclusive deixar de ser o país que se orgulha da sua matriz de energia para ser um país que lamenta.
- Eventos recentes como as ondas de calor ou as enchentes deveriam acender um sinal de alerta mais urgente para a questão da resiliência das cidades?
Sem dúvida, o planeta já aqueceu, já está posto que a gente vai ter de mudar. Não o futuro, temos de mudar o presente, e acho que isso é óbvio, mas é tão óbvio que algumas figuras, na sociedade, na população, talvez não queiram enxergar. A gente não pode normalizar essas questões de forma alguma.
- Qual é a importância de ter essa COP em Belém? Segundo o Censo de 2022, mais da metade da população mora em favelas.
Por que a gente precisa de uma COP? Porque a gente tem um problema global, e ninguém consegue resolver sozinho, não adianta o Brasil ter boa vontade e os Estados Unidos não quererem fazer nada. A gente precisa de cooperação, e aí a COP é, literalmente, uma reunião em que o mundo todo se une para falar sobre o ponto em que estamos dessa crise, o que a gente pode fazer, o que a gente quer fazer para tentar resolvê-la. Cada país, cada sociedade vai dar a resposta que puder dentro do seu território. Não tem um debate sobre a cidade, o rural, a floresta, é muito difuso. Por outro lado, tem a questão de que Belém e Amazônia são o pano de fundo dessa COP. Sem dúvida, se fosse uma COP na Antártida, seria um outro pano de fundo. Já escutamos o próprio presidente da COP falar que o Brasil não escolheu São Paulo, nem Rio de Janeiro, que são as cidades mais ricas, para fazer essa COP, embora ricas com muitos problemas. Escolheu Belém com tudo que vem no pacote, com a falta de infraestrutura, e também com a beleza.
- É possível fazer a transição energética sem contar com o financiamento que vem das fontes fósseis?
Hoje tem um principal fator que atrapalha a transição e não é o financiamento, é o subsídio aos combustíveis fósseis. Então, mesmo que se coloque bastante dinheiro na economia de baixo carbono, que já está acontecendo, o fato da gente manter US$ 7 trilhões de subsídio para combustíveis fósseis segundo o FMI, para manter uma máquina girando que é imbatível. Então, a primeira fonte que coisa está sendo discutida é justamente a reforma dos subsídios, que é algo que o G-20 já se comprometeu a fazer, o próprio Brasil já aderiu lá atrás. Senão, fica essa coisa de que precisamos investir no petróleo para poder usar o recurso para fazer a economia da transição. Não faz sentido algum, quando na verdade estamos dando recurso para o petróleo se sustentar. Essa tese de que a gente tem que fazer exploração de combustíveis fósseis para poder fazer a nossa transição talvez sirva para outro país; para o caso do Brasil, não. Primeiro, tem que se usar todas as fontes possíveis, públicas e privadas, multilaterais, as nacionais, a gente tem que usar o nosso orçamento de forma estratégica também. Se a gente adotar o princípio de “quem polui paga”, como no mercado de carbono, tenho certeza de que conseguiríamos acelerar a transição, do mundo todo, com bastante força.
- No debate das COPs sempre há a questão do financiamento dos países ricos para os países pobres, que demorou a sair do papel. Você acredita que esse debate vai avançar?
A gente tinha uma meta de US$ 100 bilhões, demorou para que se alcançasse isso. Agora o dinheiro está fluindo. A questão não é não haver esse recurso, mas sim se é suficiente. A gente precisa de mais. A pergunta é se isso vai avançar na COP-30. A nossa expectativa é de que haja um avanço substantivo no financiamento da adaptação. É muito mais difícil financiar, porque, em geral, requer muito recurso público. Se a gente não conseguir, especialmente os países em desenvolvimento de baixa renda, que precisam desse capital mais livre para poder fazer algumas reformas e poderem se organizar internamente, eles não necessariamente têm recursos. E também reclamam muito dos endividamentos, porque estão cada vez mais endividados, a mudança do clima está forçando mais gastos para adaptação e reconstrução. Então tem aí uma agenda muito importante na COP-30 do financiamento da adaptação.
- Você tem expectativa de que algum acordo que avance significativamente um tema seja realizado na COP?
A minha principal expectativa é por um pacote ambicioso de adaptação nessa COP, com pelo menos cinco decisões que tocam a temática da adaptação, e essa é uma oportunidade única inclusive para o Brasil deixar esse legado. Outra expectativa igualmente importante, porque sem ela não adianta a gente avançar nos demais temas, é de que a gente consiga melhorar nessa questão da mitigação. Até o momento foram apresentados muito poucos planos nacionais, as chamadas NDCs. Estamos num patamar muito baixo agora, precisamos de mais ambição. Eu realmente espero que seja uma COP da virada, em que a gente consiga focar realmente na implementação do Acordo de Paris e avançar. Temos uma grande oportunidade no Brasil de construir, enfim, um pacote ambicioso de decisões para esse tema, isso seria um enorme legado. Também pode responder aos anseios das populações que estão nas cidades, que estão nas periferias, e estão experimentando o pior da mudança do clima. Pode ser um resultado muito concreto, muito real. Por exemplo, o financiamento dos países ricos aos países pobres: atingiu a meta anual de US$100 bilhões. No ano passado decidiu-se que isso passaria para US$300 bilhões, até 2035. Na COP de Belém, o Brasil tem a chance de apresentar um roteiro, um mapa, não para US$300 bilhões, mas para US$1,3 trilhão de dólares do financiamento público e privado. A conversa é: quais são as fontes? Será que a gente consegue incluir os poluidores como pagadores? Essa é a discussão desse ano e que o Brasil tem que apresentar uma proposta em Belém junto com o Azerbaijão (sede da COP anterior).
- O que é exatamente a adaptação e qual é a importância dela?
Adaptação é qual ajuste você faz para algo que funcionou no clima anterior poder funcionar no novo clima, no planeta mais quente. Há vários tipos de projetos. Vou mencionar, porque eu citei antes, a questão da energia, das hidrelétricas. Elas hoje, a depender de onde estão, por exemplo, no norte do País, estão produzindo menos, porque chove menos. Aí você tem diferentes medidas de adaptação, por exemplo, uma delas é fazer com que os reservatórios dessas hidrelétricas tenham um bom nível de conservação, usar o próprio reservatório como uma bateria do sistema. Então, você tem adaptações que são de infraestrutura, de larga escala, até coisas muito práticas e diretas. Por exemplo, nas ondas de calor, qual é a adaptação que as escolas têm que fazer? Elas todas vão ter ar-condicionado, as crianças vão fazer educação física nesse calor? No caso do Rio, a cidade colocou estações de água para a população se refrescar, eles têm dado alertas constantes, isso também é adaptação.
- Qual é a diferença entre adaptação e mitigação?
Na realidade, hoje a gente não tem mais que separar. Tradicionalmente, mitigação é o que a gente tem que fazer para atacar as causas da mudança do clima, ou seja, redução de emissões. E adaptação é lidar com as consequências, com calor, lidar com eventos extremos. Por muito tempo, parecia que você faria uma coisa ou outra, só que hoje não existe mais isso, é um só problema. Se você não investir em adaptação, não conseguirá manter sua renovabilidade. E, da mesma forma, se a gente não mitiga, se a gente não reduz emissão, não vai ter como adaptar, a adaptação tem um limite. Elas são inseparáveis.
- Você acredita que o tema ambiental está presente para a maioria da população brasileira atualmente?
Os brasileiros estão sofrendo, vivendo os dramas climáticos na pele, no bolso, no cotidiano. São as populações especialmente pretas e pardas que estão sofrendo mais, estão mais expostas à maioria dos riscos climáticos. A gente já está pagando mais caro na conta de luz já por causa da crise climática. Você anda na cidade hoje e não sabe se vai conseguir voltar para casa, porque pode inundar, você não sabe se vai aguentar o calor. Há uma pesquisa da Quaest sobre o caso do Rio Grande do Sul, em que 99% da população associou a tragédia das chuvas à mudança do clima, então praticamente não precisamos convencer ninguém de que o problema existe e precisa ser tratado. Mas temos um desafio agora, que é como a gente quer tratar. Queremos deixar para os governos resolverem isso? Achamos que o setor privado vai resolver sozinho? Eu não acho que nenhum nem outro.
- Como podemos lidar com políticos que hoje em dia não acreditam na crise climática e agem em prol dos combustíveis fósseis?
Não vejo nada de novo nisso, essa é a realidade que está por vir desde sempre. Acho que agora talvez a gente nunca tenha tido tantos eleitores que sabem o que querem, e que sabem que se, por exemplo, no Brasil continuar existindo uma política de expansão de combustíveis fósseis, a gente vai perder inclusive o lugar no mundo. O momento nos impele a lidar com isso de outra forma e pedir para que a política seja climática.
Com informações de: O Estado de São Paulo.